segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

MANIFESTO SERRANO


     Nós, moradores antigos dos Campos de Cima da Serra, município de São Francisco de Paula - RS, sentimos a necessidade de levar a público a atual realidade de nossa região que vivia basicamente da pecuária extensiva, usando a prática bicentenária da queima do campo para eliminar a macega seca do final do inverno e, com isso, renovar a pastagem.  
     O fato desse sistema ser praticado todos os anos fazia com que a palha a ser queimada fosse rala, produzindo um fogo de baixa intensidade, nunca atingindo temperaturas elevadas e, consequentemente, não prejudicando o ecossistema. Da mesma forma, sendo fraco, o fogo se extinguia nas proximidades de lugares úmidos como matos e banhados.
     Ressaltamos que a denominação tradicional de “Queima do Campo” não retrata com fidelidade essa prática, pois tínhamos o cuidado de aproveitar o vento para direcionar a labareda no sentido horizontal, evitando danos ao solo e gerando um fogo muito fraco e muito rápido, queimando somente a palha seca e, portanto, sem produzir brasa, razão pela qual será mais apropriada a denominação de uma simples “sapecada do campo”. Essa característica o fazia completamente diferente das queimadas realizadas nas regiões centro-oeste e norte do Brasil.
     É importante salientar, também, que a cinza possui um caráter alcalino e, por essa razão, colaborava de maneira efetiva para diminuir a acidez do solo, fazendo com que esse se tornasse mais produtivo.
     A afirmação que os fazendeiros derrubaram matas nativas para aumentar o campo não corresponde à realidade, uma vez que a região de Cima da Serra era originariamente campo. Haja vista a pequena camada de terra sobre a rocha* que é característica de solo próprio para gramíneas. Só mais tarde se formaram os capões (florestas de pequena extensão) espalhados por toda a região, formando um mosaico de rara beleza, o que, diga-se de passagem, encantou os portugueses e espanhóis quando aqui chegaram.
     Já em 1822, o renomado naturalista francês, Augusto Saint-Hilaire, em viagem ao Rio Grande do Sul, fez referências elogiosas à paisagem serrana e aprovou o método da “sapecada” como melhor forma da renovação do pasto e do combate às ervas daninhas.
     Além de eliminar ervas invasoras prejudiciais, nossa “sapecada” favorecia o controle do carrapato, sem contar as gramíneas nativas que necessitam do calor produzido pelo fogo para quebrar a dormência em que se encontram suas sementes a fim de que possam germinar, perpetuando, assim, a própria espécie.
     Cumpre lembrar que, no período da “sapecada”, mês de agosto, não há filhotes de animais no campo, porque os ninhos são feitos somente a partir de setembro, início da primavera. Além disso, após essa prática, nunca se encontrou qualquer animal queimado ou asfixiado, razão pela qual ela não ocasionou a extinção de nenhuma espécie animal da região.
     O benefício dessa prática anual, tradicionalmente realizada há mais de duzentos anos, ia muito além da renovação da pastagem e do controle das pragas, pois evitava a existência de macegas altas que se tornam extremamente perigosas por poderem ocasionar incêndios de grandes proporções e, como tal, incontroláveis. Como agravante, é sabido que algumas aves, como o Quero-Quero, conhecido como “Sentinela dos Pampas”, não fazem ninho em macegas altas.
     Outro dado significativo é que o gás carbônico gerado pela queima da vegetação seca é compensado pela fotossíntese realizada pela macega nova que aponta já nos primeiros dias após a “sapecada”. Soma-se a isso que, comprovadamente, as plantas jovens consomem maior quantidade de dióxido de carbono e liberam mais oxigênio no ambiente, garantindo o ar puro.
     A exemplo disso, vale lembrar que, no século passado, pacientes acometidos pela tuberculose vinham, por indicação médica, hospedar-se em hotéis de nossa cidade para usufruírem dos benefícios curativos da boa qualidade do ar serrano.
     Cabe esclarecer que os animais não comem a macega no final do inverno porque ela fica completamente seca, também não realizando fotossíntese e, em decorrência disso, sem condições de colaborar para a pureza do ar.
     Como os Campos de Cima da Serra são dobrados (cheios de elevações) e excessivamente pedregosos, impossibilitam o uso de maquinário para o corte da macega seca, tornando muito difícil, sem a “sapecada”, a continuidade da pecuária.
     Esse contexto gerou a tendência de mudança da atividade econômica, surgindo a monocultura do pínus, a cultura da batata e de hortaliças em geral.
     Queremos deixar bem claro que nossa contestação não se dirige aqueles que se dedicam a estes cultivos, mas contra o impasse em que a lei**, inviabilizando a pecuária, prática econômica predominante da região, “embretou” os pecuaristas que, sem saída, foram forçados a vender suas terras e, até mesmo, por questão de sobrevivência, a usar desses novos recursos.
     Vejamos as consequências desses cultivos.
     O cultivo do Pínus, planta exótica e invasora, tem como consequências:
     a) acabar com a belíssima paisagem dos Campos de Cima da Serra, podando de maneira empobrecedora e lamentável o potencial turístico da região;
     b) contribuir fortemente para secar nossos mananciais de água;
     c) exaurir a terra de seus nutrientes, empobrecendo-a;
     d) colaborar para o extermínio da fauna e da flora, uma vez que não produz alimentos para os animais e nem condições para que eles se reproduzam, ao mesmo tempo que, sendo invasora, mata toda e qualquer vegetação nativa a sua volta;
     e) favorecer o extermínio de animais também pela utilização de formicidas que são colocados nas mudas no período do plantio.
     Acrescenta-se, ao exposto, o perigo inevitável e iminente de incêndios espontâneos de grandes proporções, sem nenhum controle, colocando em risco todo o ecossistema da região e todas as formas de vida, inclusive a humana, sem contar os danos materiais que são inevitáveis. São inúmeros os exemplos dessa calamidade que, nos Estados Unidos, arrasam grandes extensões de terras sem que eles, com toda a tecnologia que possuem, consigam deter a tragédia.
     Já a cultura da batata e das hortaliças traz outros prejuízos:
     a) com a prática de arar, a pequena camada de terra sobre a rocha, com espessura aproximada de 30 cm, sofre uma grande erosão que é agravada pelas irregularidades do terreno. Isso inviabilizará todo e qualquer aproveitamento posterior do solo;
     b) o uso de agrotóxico nas plantações, tantas vezes abusivo, não só provoca o envenenamento de animais, principalmente de aves, peixes e crustáceos, como também polui nossas nascentes, comprometendo a qualidade da água que, de nossa região, situada a 922 m de altitude, é distribuída para todas as cidades circunvizinhas, já que fazemos parte de cinco bacias hidrográficas.
     Mas o que nos deixa estupefatos é que sempre ouvimos das autoridades que nos multam pela “sapecada” a afirmação que é “imprescindível proteger a natureza”, sendo esta a razão de todas as leis.
     Entretanto, há um silêncio absoluto quanto à destruição do campo. Parece não haver nenhuma lei que o proteja. Os próprios órgãos governamentais regulamentam plantações exóticas e cultivos carregados de agrotóxicos em pleno campo, destruindo-o de maneira profunda. 
     E fica conosco a pergunta: - Por ventura não fará o campo parte da natureza?!...
     No aspecto cultural, vemos a Tradição Gaúcha, que por tanto tempo representou tão dignamente a alma do povo do Rio Grande, ser enfraquecida pela proibição da “sapecada” que impõe ao ruralista, além de problemas financeiros, o dissabor de se ver abordado por funcionários, no mais das vezes despreparados, usando de abuso de autoridade, pois chegam em nossas propriedades fortemente armados como se fôssemos criminosos.
     E a triste realidade permanece doída diante de nossos olhos: os lendários Campos de Cima da Serra estão, lamentavelmente, desaparecendo como paisagem e como ecossistema.
     E nós, que amamos esta terra, tememos pela herança que ficará para nossos filhos, pois não compreendemos um viver sem tradição, não compreendemos um viver sem valores verdadeiros que brotem de um trabalho feito em harmonia com a natureza e que contribua para o bem comum.

GRUPO SERRANO
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Moradores dos Campos de Cima da Serra


São Francisco de Paula de Cima da Serra, 20 de setembro de 2012.

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* Aproximadamente 30 cm
**Lei Estadual nº 9.519/92


  Nota: Esse Manifesto representa o conhecimento empírico de diversas gerações que viveram nos Campos de Cima da Serra. Hoje, trabalhos científicos de renomados pesquisadores como Alindo Butzke, Roberto Birch Gonçalves e Alice MariaTrindade Ramos, entre tantos outros, vêm documentar a veracidade dessas informações.

         Pronunciamento Câmara de Vereadores de São Francisco de Paula
Dezembro de 2015


         Pronunciamento feito na Câmara de Vereadores de São Francisco de Paula, dia quinze de dezembro de dois mil e quinze,  por ocasião do pedido da inclusão do Manifesto Serrano nos Anais da Casa

        Cumprimento a Mesa, as autoridades presentes, nossos visitantes, e saúdo a todos os serranos que vieram compartilhar conosco este momento que, para nós, se reveste de tão profundo significado.            
    Venho a esta Tribuna consciente da responsabilidade que é qualquer pronunciamento nesta Casa que leva o nome de Elon Wood Duarte Barcelos.
      Conheci pessoalmente o Dr. Elon e sou testemunha, não só de sua honradez, de sua integridade, mas também da forma como ele exerceu a sua profissão. Jamais o Dr. Elon deixou de atender a um chamado. A chuva, as geadas, as frias madrugadas, os feriados,  nada o impedia de atender com presteza a todos, sem mesmo cogitar se aquele que o chamava era um homem de posses, ou alguém que não tivesse um centavo para lhe dar.
    O Dr. Elon, sou testemunha, exerceu a Medicina como um verdadeiro sacerdócio. E tenho certeza também de que, por todos os lugares por onde andou, ele deixou um rastro fundo de bondade.
      Sou portadora do  Manifesto Serrano, escrito por antigos moradores deste município, e que trata, basicamente, da pecuária extensiva e das profundas modificações do ecossistema causadas pela proibição da tradicional Queima do Campo.
       Em nome do Grupo Serrano, solicito a inclusão deste documento nos Anais desta Casa, para que as gerações futuras tomem conhecimento da lamentável realidade em que se encontra, nos dias de hoje, toda a região de nossos antigos campos.
    Peço licença à Mesa para fazer um breve comentário sobre questões pertinentes às abordadas no Manifesto Serrano.
      E quero iniciar este breve comentário, trazendo palavras de um pensador oriental. Ele diz assim:
    “Existem três coisas que ninguém consegue esconder: o sol, a lua e a verdade.”
     Essas palavras me alegram, me fortalecem e, de certa forma, me tranquilizam, por que, sem nenhuma dúvida, a verdade se fará ouvir. E um dia, talvez mais cedo do que se imagina, a insensatez da proibição da Queima do Campo em Cima da Serra será para todos uma evidência.
       É bem verdade que, ultimamente, algumas vozes têm se pronunciado sobre o equívoco que se está cometendo no que se refere aos destinos que se vêm dando aos Campos de Cima da Serra.
      Mas, que diferença dessas vozes que vêm de longe para a voz daqueles que amam esta terra, daqueles que tiveram, nesta terra, as lições mais lindas, e também as mais profundas; daqueles que têm, neste chão, a sua raiz, o seu passado, toda a sua História.
     Que diferença daquelas vozes tão distantes para a voz daqueles que vivenciaram, em nossos galpões, a mais larga hospitalidade; daqueles que, ao cair da tarde, sentiam a alma inundada pela paz que reinava na imensidão de nossos campos, sentiam a alma inundada pelo silêncio, pela grandiosidade daquele silêncio que ecoava quase como uma prece...
       Ah! Com que facilidade se admite um equívoco que vem destruindo todo um ecossistema...
    E, ao falar em destruição, é oportuno lembrar a catástrofe que está acontecendo nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, estados que estão sendo invadidos por detritos poluentes gerados por uma atividade econômica.
       E, neste momento, é preciso que se diga, de cabeça erguida e com a voz firme, que aqui, em Cima da Serra, nestes campos que se estendiam desde nosso município até Lajes, em Santa Catarina, havia uma atividade econômica que, por mais de duzentos anos, não gerou qualquer detrito poluente, uma atividade econômica que nem mesmo lixo produzia.          
      E é necessário que nossa cabeça permaneça erguida, e que firme permaneça a nossa voz,      para que as gerações futuras saibam que esta atividade econômica, a pecuária tradicional, que por mais de dois séculos não gerou absolutamente nada de detritos poluentes, que esta atividade econômica não foi contemplada pelos órgãos oficiais com o devido respeito. E uma lei, uma lei completamente equivocada, uma lei que eu diria criminosa, inviabilizou a sua continuidade.
    Que grande esse equívoco!... Que grande e que lamentável esse equívoco!...
      Esse equívoco retirou de nossas vidas o sentido mais amplo, retirou de nossas vidas o sentido mais profundo. Esse equívoco tirou a base do nosso conhecimento, daquele conhecimento centenário que aprendemos com os nossos pais, com os nossos avós, nossos bisavós, e com o qual mantivemos intacto, no decorrer desses duzentos anos, todo esse ecossistema.
      Mas a lei, aquela lei por demais equivocada, anulou esses ensinamentos de nossos antepassados e, como decorrência, nossas águas já não são límpidas; como decorrência, não há mais a beleza de nossos campos.
       Esse equívoco colocou, diante de nossos olhos, a perspectiva de um futuro impregnado de dor, futuro impregnado de uma dor proveniente de doenças... doenças como o câncer, doenças como o Alzheimer, doenças como o enfarto.
       Esse equívoco colocou em nossas vidas uma angústia doída demais para que se possa conviver com ela, que é a angústia de ver, a angústia de perceber, dia após dia, o destroçar de todo um passado, passado em que, certamente, poderíamos nos apoiar com firmeza para prepararmos um amanhã em que se pudesse viver com dignidade.
        E nossos passos... nossos passos já perderam a certeza do caminho. Nesta direção, se deparam com as águas poluídas;  nesta outra, com a morte dos animais; numa terceira, é o câncer , é o Alzheimer... E ali, logo ali, se fará um deserto...
     E, assim, nossos passos nos conduzem, apenas, para  presenciarmos o esfacelamento de toda uma cultura.
       Com que naturalidade se aceita um equívoco que vem estragando nosso campo, desfazendo a nossa paisagem – a mais linda deste planeta!
          Com que leviandade se aceita um equívoco que vem exaurindo nossa terra, empobrecendo-a para nossos próprios filhos, roubando-a de nossos próprios netos.
         Esse equívoco colocou em nossa alma um inexplicável, um incomensurável vazio.
           Esse equívoco colocou, no fundo de nossa alma, a desesperança...
           E as conseqüências se fazem inevitáveis, as conseqüências se fazem por demais dolorosas:
            - o homem serrano já não tem raiz;
            - o homem serrano já não tem identidade.
       E a nossa cerração que, ontem, espalhava tanta beleza na imensidão de nossos campos, encobre, hoje, tão somente, a ausência dos animais que compunham a nossa paisagem; nossa cerração que, ontem, naquelas frias madrugadas de agosto, pontilhava de tantos mistérios aqueles lendários Campos de Cima da Serra, hoje, encobre, não mais que a ausência do tipo humano próprio desta região – o gaúcho serrano – o inigualável gaúcho serrano, esse gaúcho que quase não se vê mais, esse gaúcho que já não mantém a característica mais marcante que tínhamos e da qual tanto nos orgulhávamos, que era a de sermos uma das cidades mais gaúchas deste nosso Rio Grande!
       Que as gerações futuras venham a saber desse crime, desse crime hediondo cometido nos Campos de Cima da Serra.
        Muito obrigada

                                                                                 Luciana Olga Soares



          São Francisco de Paula, 11 de dezembro de 2015